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segunda-feira, janeiro 26, 2004

A Maçã no Escuro
Clarisse Lispector

- Você está consciente, meu filho, do que está fazendo?
- Estou, sim, meu pai.
- Você está consciente de que, com a esperança, você nunca mais terá repouso, meu filho?
- Estou sim, meu pai.
- Você está consciente de que, com a esperança, você perderá todas as outras armas, meu filho?
- Estou sim, meu pai.
- E que sem o cinismo você estará nu?
- Estou sim, meu pai.
- Você sabe que esperança é também aceitar não acreditar, meu filho?
- Sei sim, meu pai.
- Você está consciente de que acreditar é tão pesado a carregar como uma maldição de mãe?
- Estou sim, meu pai.
- Você sabe que o nosso semelhante é uma porcaria?
- Sei sim, meu pai.
- E você sabe que você também é uma porcaria?
- Sei sim, meu pai.
- Mas você sabe que não me refiro à baixeza que tanto nos atrai e que admiramos e desejamos, mas sim ao fato de que o nosso semelhante, além do mais, é muito chato?
- Sei sim, meu pai.
- Você sabe que esperança consiste às vezes apenas numa pergunta sem resposta?
- Sei sim, meu pai.
- Você sabe que no fundo tudo isso não passa de amor? Do grande amor?
- Sei sim, meu pai.
- Mas você sabe que a pessoa pode encalhar numa palavra e perder anos de vida? E que esperança pode se tornar palavra, dogma e sem vergonhice? Você está pronto para saber que olhadas de perto as coisas não têm forma e que olhadas de longe as coisas não são vistas? E que para cada coisa só há um instante? E que não é fácil viver apenas da lembrança de um instante?
- Esse instante...
- Cale a boca. Você sabe qual é o músculo da vida? Se você disser que sabe, você está ruim; se você disser que não sabe, você está ruim... (o pai estava começando a descarrilhar).
- Não sei, respondeu sem convicção, mas porque sabia que esta é a resposta que se deve dar.
- Você tem "descortinado" muito ultimamente, meu filho?
- Tenho, pai, disse contrafeito com a intrusão de intimidade, toda vez que o pai quisera "compreendê-lo", deixara-o constrangido.
- Como vão suas relações sexuais, meu filho?
- Muito bem, respondeu com vontade de mandar o pai para o inferno de onde o tirara.
- Você sabe que o amor é cego, que quem ama o feio bonito lhe parece, e que seria do amarelo se não fosse o bom gosto? E que em casa de ferreiro espeto de pau, e quem não tem cão caça com gato, e bola não erra? Disse o pai descarrilhando um pouco mais, não faltava muito para começar a contar o que fazia com mulheres antes naturalmente de ser casado com tua mãe. Você sabe que esperança é duro combate que aos fracos abate, e aos fortes, etc.?
- Sei sim, meu pai.
- Meu filho. Você está consciente de que de agora em diante, para onde você vá, será perseguido pela esperança?
- Estou sim, meu pai.
- Você está disposto a aceitar o duro peso da alegria?
- Estou sim, meu pai.
- Mas meu filho! Você sabe que é quase impossível?
- Sei sim, meu pai.
- Você ao menos sabe que a esperança é o grande absurdo, meu filho?
- Sei sim, meu pai.
- Você sabe que há que ser adulto para ter esperança!!!
- Sei, sei, sei!
- Então vai, meu filho. Ordeno-te que sofras a esperança.
Mas já na primeira nostalgia, a última como antes de nunca mais, Martim gritou pelo amparo:
- Que luz é essa, papai? Gritou lá solitário na esperança, andando de quatro para fazer seu pai rir, fazendo uma perguntinha bem antiga e tola contanto que adiasse o momento de assumir o mundo. Que luz é essa, papaizinho? perguntou gaiato, com o coração batendo de solidão.
O pai hesitou severo e triste no seu túmulo.
- É a do fim do dia, disse apenas por piedade.
(...)
- Vamos, disse então, aproximando-se incerto dos quatro homens pequenos e confusos. Vamos, disse. Porque eles deviam saber o que faziam. Eles certamente sabiam o que faziam. Em nome de Deus, eu vos ordeno que estejais certos. Porque toda uma carga preciosa e podre estava entregue nas mãos deles, uma carga a jogar no mar, e muito mais pesada também, e a coisa não era simples: porque essa carga de culpa devia ser jogada com misericórdia também. Porque afinal não somos tão culpados, somos mais estúpidos do que culpados. Com misericórdia também, pois. Em nome de Deus, espero que vocês saibam o que estão fazendo. Porque eu, meu filho, eu só tenho fome. E esse modo instável de pegar no escuro uma maçã - sem que ela caia.


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