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sexta-feira, junho 11, 2004

Deus joga truco

Fanalti era um garoto inquieto. Desde pequenino não se contentava com as resposta que obtinha na escola, em casa, entre os amigos.
E sempre tinha a curiosidade de conversar com a mula-sem-cabeça, assoviava de noite esperando que as cobras entrassem pela fresta da porta da sala.
Uma vez, comprando verduras no Mercado Municipal com a mãe, achou q finalmente ia ser pego pelo "Homem do Saco". Sentiu uma euforia, um híbrido de medo e curiosidade.
O tempo foi passando e os apelidos foram mudando gradualmente: esquisito, freak, herege, chato, mal-amado,insensível.
E suas justificativas se tornando cada vez mais "convictas": diferente, rebelde, descrente, realista, não-malipulável, intimista, exigente, inconformado, agnóstico.
O tempo fez questão de corrompê-lo através da tolerância, da solidão e dos desprazeres transformando-o num homem quieto, que relevava, dissimulava e dizia coisas só reproduzidas. Ficou íntimo dos clichês e passou a aplicar conceitos físicos nos relacionamentos: ação e reação na mesma proporção. Conforme recebia, retribuía. E sabia a hora que a limitação chegava e deixava de desenvolver, de dizer, de debater, satisfeito com o passo dado daqueles que por alguns instantes deixavam de consumir símbolos culturais e publicitários de amizade, amor, felicidade e família.
Certo dia, desatento, um milagre (para os outros) e uma epifania (para ele) aconteceu: Deus estava sentado em sua sala, pronto para uma conversa.
Entrou sem hesitar, sorriu, abraçou o que não tinha matéria, e olhou nos olhos daquele Ser triste e cansando de ser tão superestimado, cobrado e castrado.
Os dois assistiram filmes, ouviram música, dividiram cobertores, jogaram truco e tomaram vinho quente.
Choraram, falaram de mulheres, contaram suas histórias.
E Deus acabou confessando que havia fumado maconha na adolescência.
E Fanalti, que rezava todos os dias escondido da namorada.

- Sabe Deus. Pra mim você nunca passou de um bicho-papão melhor elaborado! Daquelas lendas criadas para pôr rédeas nas crianças e assim, não causarem muita dor-de-cabeça.

Deus a gargalhadas respondeu:

- E você meu querido Fá, foi o único rapaz que jamais me pediu algo e de quem sempre esperei a brecha impotente e irresponsável para clamar-me por ajuda com as coisas que você mesmo escolhia. Esse dia não chegava... então vim mesmo assim, de sopetão. Mas chega de sentimentalismo e me passa mais uma lata de cerveja.

Fanalti deus três tapinhas nas costas do seu novo amigo e passaram a noite cantando músicas do Legião Urbana, Raul Seixas e Rappa.
"Deusito", como uma criança exausta, dormiu no colo do frágil Fanalti que, pela primeira vez, sentiu-se à vontade com alguém.

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